20 de julho de 2016

A sociedade moderna e suas capas de invisibilidade

Era um sábado à noite, na praça do terminal de ônibus no bairro da Lapa, zona Oeste de São Paulo. Eu, juntamente com um grupo de jovens, fazia uma ação social de entrega de café com leite e pão francês com frios às pessoas em situação de rua do entorno. Coincidentemente, havia outro grupo realizando o mesmo trabalho porem entregando marmitex. Cumprimentamos-nos cordialmente e os questionamos os locais onde não haviam entregado. 
Seguimos nosso trajeto e, nos deparamos com um senhor descalço, com a carga dentaria prejudicada pelo tempo e circunstâncias e, carregando um saco com os seus pertences. Aproximamos-nos e perguntamos: O senhor aceita um lanche?  E, para nossa surpresa a resposta foi: Obrigado, eu já comi, mas ali na praça tem gente que não comeu. Levem para eles.
A generosidade do homem me fez refletir se realmente sabemos quem são esses indivíduos, os quais denominamos “moradores de rua”. É necessário irmos além de simplesmente e ocasionalmente sairmos do conforto dos nossos lares para caridosamente olhar para esse grupo social, que nos demais dias, normalmente, nos passam despercebidos no corre, corre do nosso dia a dia. Precisamos refletir sobre as diferentes representações que esses indivíduos podem adquirir em nossa sociedade, ampliando essa reflexão para comportamentos e tendências políticas, econômicas e sociais ou alternativas aos modos de vida da sociedade contemporânea.
Podemos começar pelas representações ou rótulos utilizados tanto para classificar como diferenciar pessoas em situação de rua: indistinguíveis, marginais, vítimas, fora dos padrões de civilidade, carentes de atendimento pelos serviços públicos, pessoas que tem direitos e pessoas fora do mercado de trabalho. Algumas vezes ainda são tratados como pertencentes à classe trabalhadora, mas em condições de miséria extrema e diferenciados como abaixo dessa classe. Lembrando que o “mendigo” dos primórdios da modernidade, para Marx, era fruto de dois processos: expropriação e legislação, ou seja, os “mendigos” dos séculos XIV ao XVI eram ex-camponeses que perderam suas terras e migraram para as cidades e, então foram enquadrados em leis que regulavam suas condutas nesse novo meio social. As leis estabeleciam quem e quando podiam mendigar. Mas com o passar do tempo e mudanças ocorridas nas sociedades, particularmente a partir da década de 1980, as representações de quem seriam os “mendigos” começaram a mudar, passando as pessoas em situação de rua, por serem vítimas de maior incidência de leis e políticas, receberem o rótulo de mendigos e passam a serem punidas pela sua presença e atitude. Sendo também associados à criminalidade. Porém, estudos sociais, estatisticamente vem demonstrando que a criminalidade cometida por pessoas em situação de rua é muito menor do que por não-moradores. Estes, normalmente, são vítimas da condição de sem teto e da omissão do Estado que deveria garantir o direito constitucional a um abrigo.
Por outro lado, a situação também é paradoxal, pois, a população expressa que, por um lado são necessárias políticas de assistência social aos “miseráveis” e, ao mesmo tempo, há preconceito em relação às pessoas em situação de rua. Estes, para a sociedade, vestem capas que os tornam invisíveis. Sim, aquela mesma presente na saga Harry Potter que torna seu usuário completamente invisível e dura para todo o sempre, ocultando-o de forma constante e impenetrável desde que o vento não a carregue ou o indivíduo não se denuncie fazendo algum barulho, exemplificado nesse texto por algum comportamento ou atitude considerados fora dos padrões, praticados por aqueles indivíduos que compõem o segmento invisível em nossa sociedade.
Continuemos sim a distribuir lanches e cobertores, principalmente nos meses de intenso frio, pois é importante sermos solidários e fraternos, porém, precisamos sair da zona de conforto da nossa ingenuidade romântica e ampliarmos nossa reflexão a respeito de quem são os “mendigos” da atualidade e porque se constituem como tal. E quais serão as questões socioambientais que compõem essa problemática, bem como de que forma podemos contribuir para que a necessidade de se distribuir lanches e cobertores a esses indivíduos diminua, ao invés de aumentar, conforme alguns estudos vem apontando.
Larissa Jurado
Referencias
JUSTO, Marcelo Gomes. Vida nas ruas de São Paulo e alternativas possíveis – Um enfoque sócio ambiental; 2006.

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